A liquidez da vida e da sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer muito tempo. Zygmunt Bauman

Para tentarmos entender e, mais ainda, nos adaptar ao turbilhão de mudanças que estamos vivenciando, é fundamental que a gente comece a fazer algumas correlações. Talvez juntando temas aparentemente sem muita conexão, a gente consiga algum denominador comum.

Neste artigo, vamos tentar correlacionar uma pequena parte da obra Modernidade Líquida, de Zygmunt Bauman, filósofo polonês contemporâneo com parte de outra obra chamada Economia Donut, da economista inglesa Kate Raworth.

“Tudo o que é sólido se desmancha no ar” – Marx e Engels

Talvez inspirado no paradoxo acima, Bauman faz algumas constatações bastante interessantes a respeito de nossa estrutura social.

Vejamos as principais ideias1:

– Modernidade Sólida – era o modo de viver até a década de 1980, quando termina o chamado Estado de bem-estar social. Vale ressaltar que as Revoluções Burguesas (Francesa e Industrial) demarcam o início da era Moderna.

– Até então, a Vida era baseada em preceitos sólidos: Estado-nação, burocracia, cidadania, classes sociais, instituições tradicionais, família, religião, propriedade, carreira no emprego, etnia, gênero, etc.

– Essas estruturas criam uma identidade garantida, auto-racional, burocraticamente organizada e relativamente previsível.

Mas, a partir da década de 80, algumas mudanças começaram a acontecer, como:

– Globalização e seus efeitos;

– Estados-nação perdem poder de promover mudanças locais e internacionais. Provavelmente, esse poder já foi solapado desde a 1ª. Guerra mundial;

– Aumenta o número de corporações transnacionais, com regras e objetivos próprios, geralmente alheios às culturas e interesses locais;

– Tecnologias diminuem cada vez mais as distâncias do mundo e causam verdadeiras revoluções nos costumes e nos ritmos de vida;

– Mais migrações humanas entre regiões e países, em um amálgama cultural sem precedentes;

Esses fatores e outros foram desmantelando a Solidez que embasava a Sociedade até então, tornando-a líquida, amorfa, maleável, gerando muitas incertezas.

Começa a se perceber um certo esvaziamento dos Espaços Públicos, surgindo um agudo apreço pela individualidade, em detrimento dos coletivos de bem-estar.

As identidades buscam novas fundações e se ancoram no Consumo o que, aliás, é fortemente incentivado, visando crescimento econômico perene.

Essas identidades também são líquidas, descartáveis. As pessoas escolhem o que querem ser através das mercadorias que podem comprar.

Bauman observa grupos distintos que vão se formando:

– Turistas, ou privilegiados, que desfrutam ao máximo essa realidade, ‘flutuando’ nessa liquidez toda;

– Uma grande maioria, que não consegue flutuar e afundam, tentando boiar na imensidão líquida.

A analogia é muito bem feita, se pensarmos em um bloco de gelo, sólido, constante, mais resistente às mudanças de contexto e a água, propriamente dita, totalmente adaptada a qualquer recipiente onde seja colocada.

E, se não há recipiente, simplesmente, se espalha no entorno, sendo absorvida pela terra e evaporada pelo ar.

Isso é ótimo para a água mas… para uma Sociedade inteira, os efeitos podem ser catastróficos, o que, aliás, já vem despontando através de vários indicadores.

A água serve para muitas coisas. Podemos fazer um bom café, tomando o cuidado para não exagerar na fervura, sob o risco de nossa bebida se tornar gasosa, se diluindo na atmosfera.

A Economia

Outra obra que podemos analisar é a Economia Donut – Uma alternativa ao crescimento a qualquer custo – ou a economia da Rosquinha.

Vejamos as principais ideias2

– O PIB – Produto Interno Bruto – vem sendo utilizado como medida de crescimento e formulação de políticas econômicas, desde a década de 1940, em todo o mundo;

– WW.Rostow, em 1960 – Definiu as Etapas do desenvolvimento econômico, com níveis de crescimento constantes, até chegar ao consumo em massa.

 Essa premissa amparava a campanha política de John Kennedy que, em seus discursos, falava em taxas de crescimento contínuo, de 5% ao ano, sem parar.

– Houve toda uma estruturação e pressão para crescimento e lucros cada vez maiores, tanto das empresas como dos bancos, lembrando que esses só crescem à base de endividamentos.

– Foi praticamente um século de propaganda voltada ao crescimento constante, através do consumo.

– Edward Bernays, sobrinho do Freud, lançou a teoria de que nos transformamos todas as vezes que compramos coisas novas. E todos buscavam ‘mudanças’.

Atualmente, o PIB global é 10 vezes maior do que 1950 – riqueza acumulada em 1% da população mundial, criando uma economia degenerativa, rompendo delicados equilíbrios naturais.

Na Natureza, nada dura eternamente. Os seres nascem, crescem, amadurecem, atuam por um tempo, as vezes longo, mas depois… acabam.

Dada a conjuntura atual, sabemos que precisamos de inovações em todas as esferas: financeiras, políticas e sociais.

Donut

Segundo a autora, precisamos de crescimentos inclusivos e outras métricas.

E ela propõe o Donut, nova forma de se conceber a Economia, com base na rosquinha, que tem um espaço central e também um limite externo.

            “No limite interno da rosca, para dentro do vazio, ficam as insuficiências que devem ser sanadas: 12 itens como alimento, saúde, educação, emprego e renda, paz e justiça, voz política, equidade social, igualdade de gênero, habitação, redes, energia e água.

O corpo da rosca é o espaço onde devemos nos situar, dimensão justa e segura para a humanidade.

No limite externo da rosca, fica o teto ecológico que não devemos ultrapassar: nove itens envolvendo mudança climática, acidificação dos oceanos, poluição química, sobrecarga de nitrogênio e de fósforo, extração de água doce, conversão do solo, perda de biodiversidade, poluição do ar e destruição da camada de ozônio.”3

O desafio requer um novo modelo de progresso – baseado no equilíbrio dinâmico entre a fundação e o teto do Donut.

Temos carências e excessos ao mesmo tempo, o que é paradoxal.

Já foram ultapassados 4 limites importantes, trazendo riscos para o ecossistema, como a mudança climática, a perda da biodiversidade, os níveis excessivos de nitrogênio e fósforo nos fertilizantes e a Conversão da Terra em pântanos e cidades.

“A resiliência de um ecossistema ou de uma comunidade depende desse padrão de saúde que liga a saúde individual à saúde comunitária, à saúde do escossistema e à saúde planetária de forma crucial. Uma cultura regenerativa é uma cultura que aprendeu a prosperar dentro dos limites planetários.”4

As teorias anteriores apostavam no equilibrio e na igualdade.

Precisamos pensar em uma Economia regenerativa, com o reaproveitamento dos materiais existentes, antes do descarte.

O que é desperdício de um lado pode ser aproveitado de outro, gerando circularidade na Economia.

É preciso haver um desenho de redistribuição dos recursos.

Uma Economia saudável deve ser criada para prosperar, não para crescer, indefinidamente.

Café com Rosquinha

Vamos então, fazer uma correlação entre essas teorias.

Estamos vivendo em sociedades cada vez mais líquidas, sem identidade definida, partindo para níveis de produção e consumo frenéticos. E, o que traz ainda mais instabilidade, com velocidades de mudança cada vez maiores, sem nos dar tempo de adaptação a cada fase nova que chega.

Paralelamente a isso, seguimos contribuindo para fortes desequilíbrios ambientais e ecológicos, para além do possível, enquanto várias necessidades básicas não são atendidas para a maior parte da população.

Desnecessário dizer que são cenários complementares que apontam para um futuro catastrófico se nenhuma mudança de rota for implementada no curto prazo.

Já há preocupações expressas por parte dos países neste sentido, mas poucas ações efetivas tem se notado em decorrência disso. Até que ponto poderemos chegar?

Precisamos de uma liquidez contida, talvez em uma xícara de um café não muito quente, para não evaporar, acompanhado de rosquinhas balizadoras do desenvolvimento econômico.

E, depois do café da tarde, a própria autora tem uma sugestão interessante de como podemos expandir os desdobramentos, mudando os rumos da economia:

“Acontece que as borras de café constituem um meio ideal para o cultivo de cogumelos, e depois podem ser usadas como ração para gado, galinhas e porcos, sendo então devolvidas ao solo como esterco. Partindo do humilde grão de café, imagine expandir esse princípio a todos os alimentos, cultivos e madeiras, e depois a todas as casas, fazendas, empresas e instituições: isso começaria a transformar as nossas indústrias florestal e alimentar do século passado em indústrias regenerativas que extraem valor dos sistemas vivos dos quais dependem e então os regeneram.”5

Fontes Consultadas:

1.https://youtu.be/wX6fXbJxYls

        2.https://www.ted.com/talks/kate_raworth_a_healthy_economy_should_be_designed_to_thrive_not_grow?language=pt-br#t-933434

3. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/590608-economia-da-rosquinha-uma-proposta-para-o-seculo-21 3

4. Livro: Design de Culturas Regenerativas – Daniel Christian Wahl – Editora Bambual, pg. 129

5. Livro: Economia Donut – uma alternativa ao crescimento a qualquer custo – Kate Raworth – Editora Zahar, pg. 239

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Sou Helena Siqueira Dornellas

Me identifico como E-E-E:

  • Sou Economista e atuei no Sistema Financeiro, em Cooperativas, no Terceiro Setor, nas áreas de Planejamento e Gestão.
  • Sou Escritora e publiquei dois livros e vários artigos em diversos canais.
  • Sou Educadora, ministrei aulas de Economia e também de Artesanato, principalmente, de Origami e Macramê. E criei o Macra-Gami, que é a junção das duas artes.

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